segunda-feira, 20 de setembro de 2010

A literatura mundial como futuro da literatura comparada

…Sic rerum summa novatur
semper, et inter se mortales mutua vivunt.
Così l’insieme delle cose sempre
si rinnova, e i mortali vivono insieme le cose tra loro comuni.

Lucrezio, De rerum natura, II, 75-76

A partir da proposta que o título deste artigo contém, parece-me essencial definir o que entendo como literatura mundial, bem como a razão e o modo de estudá-la hoje.

Para corroborar tal proposta, recorro a Auerbach, em 1952, em Philologie der Weltliteratur, e à pergunta feita por Michel de Montaigne, que há de guiar-me nesta reflexão: Que sais-je?

O que é a literatura mundial hoje? Esta é a pergunta que procurarei responder, reinterpretando criticamente a história deste conceito desde a pergunta a que me referi no parágrafo anterior, passando pelas reflexões de Auerbach, e mantendo o ano de 1952, como o ponto de partida para a atualização da nossa consciência histórica.

Auerbarch definiu a importância e o valor da consciência histórica européia a partir da filologia:
Isto é o que somos; o que nos tornamos na nossa história; só nela podemos permanecer os mesmos e ainda assim nos desenvolvermos; demonstrá-lo de modo penetrante e inesquecível é o propósito dos atuais filólogos do mundo. Adalbert Stifter ao fim do capítulo “L’avvicinamento” em Estate di San Martino, faz com que um de seus personagens diga a seguinte frase: “Seria altamente desejável que, ao fim de uma ventura humana, um espírito pudesse reassumir e abraçar com o olhar a inteira arte do gênero humano, desde a sua criação até o seu fenecer.” Stifter pensa que apenas na arte figurativa; nem creio que se possa falar mesmo do fim da humanidade. Parece-nos que ele se refere a um tempo de conclusão e de execução que permite um olhar panorâmico antes impossível”[1].

A literatura mundial enquanto conceito sobrevive em um mundo radicalmente diferente daquele em que Auerbach escreveu, não apenas pela existência da assim chamada globalização, mas, sobretudo, no que diz respeito a um ponto de vista “espiritual”: a consciência histórica mundial de um literato europeu hoje, no século XXI; que já não é mais a de Auerbach, de Thomas Mann, de T. S. Eliot e de Benedetto Croce, porque esta se revela “reformada”– entre tantas outras reformas – por uma descolonização da mente européia, pós-burguesa e extra-européia, que Auerbach e Croce jamais poderiam conceber. Ainda que aquela geração tivesse convivido com o início da descolonização de que falo.

A atual cultura literária mundial não é mais um sonho, conforme foi anunciada nos escritos de Goethe, mas uma indústria e um mercado, como Marxs e Engels preconizaram. Nela a mundialização se completou, e, talvez, sem mais esperanças confiáveis e ideologias incômodas, lançou-se a um futuro aberto, que podemos chamar de “laico”, ainda que de modo imperfeito.
Por “laico” entendo o que nos foi transmitido por Tito Lucrecio Caro, que, não por acaso, cito na epígrafe a este artigo. “As coisas mandarão luz às coisas” significa que para todo o futuro, desde Lucrécio até nós, e mesmo no futuro daqueles que serão leitores posteriormente, cumprir-se-á o mandato do De rerum natura, ou seja, o conhecimento será fruto de um intercâmbio de luzes entre as coisas.

O nosso século pode ser intitulado “sistema-mundo”, segundo o sociólogo americano Immanuel Wallerstein; uma época em que o universalismo europeu, de descendência goethiana, chegou ao fim.

O que nos cabe fazer, literatos e leitores do século XXI, mas de uma geração nascida e formada no século XX? Por um lado, há que aceitar respeitosamente essa hereditariedade européia, por outro, há que transmiti-la criticamente, a contrapelo, como sugeriu Benjamim, e revisitá-la de modo absolutamente crítico.

A descolonização do “espírito europeu” começa como uma crítica do desejo de potência eurocêntrico, irradiado por todo o planeta. Desejo que surgiu com a formação dos estados nacionais e se expandiu como uma estupenda visão imperialista que se apossou do mundo conhecido já em 1522, com a expedição espanhola de Magellano.

Se nos anos 60 do século XX, parecia-nos que, nas universidades, não havia nada mais a estudar além de páginas de uma historiografia da dominação, em outras partes, os anos após a segunda guerra mundial revestiram-se de novos valores; aqueles do pensamento anticolonial, que acompanhava a luta dos países oprimidos para livrarem-se do colonialismo europeu, que só em parte corresponde ao que hoje se denomina “Estudos Culturais”.

Tratava-se um pensamento europeu, de Bertold Brecht a Sartre, até a um inédito Gramsci, descoberto e depois venerado pelos anglo-indianos dos Subaltern Studies anglo-indiani[2]; mas, sobretudo, extra e antieuropeu, de Ho Chi Min, Frantz Fanon, Aimé Césaire, Agostinho Neto, dos miti eroici da revolução cubana, de Toni Morrison, Salman Rushdie, Èdouard Glissant, Ngugi wa Thion’go, Derek Walcott, Eduardo Galeano, Roberto Fernández Retamar e tantos outros.

Ao usar a palavra “antieuropeu”, não pretendo referir-me aos terroristas que habitam os nossos televisores, mas a uma esfera de encontros pacíficos entre seres de culturas conhecidas e opostas da era moderna. Encontros em que os ex-colonizados têm a oportunidade de falar aos ex-colonos e serem ouvidos. Condição esta que dá aos europeus a chance de aprender a ouvir. Uma ausculta que, em cinco séculos, fomos incapazes de conceber.

Hoje, também nós, italianos, podemos ler a poesia de Agostinho Neto, que guiou a nação angolana na guerra pela libertação do colonialismo português. Nos versos que reproduzo, pode-se inferir a presença do europeu através da descrição da vida do povo colonizado:

Latas pregadas em paus
fixados na terra
fazem a casa

Os farrapos completam
a paisagem íntima

O sol atravessando as frestas
acorda o seu habitante

Depois as doze horas de trabalho
Escravo

Britar pedra
acarretar pedra
britar pedra
acarretar pedra
ao sol
à chuva
britar pedra
acarretar pedra

A velhice vem cedo

Uma esteira nas noites escuras
basta para ele morrer
grato
e de fome.

O poema contém questões que cabem a todos os países colonizadores responder, não apenas Portugal.

Ao enxertar criticamente “ao desejo de potência” dentro do fenômeno histórico plurissecular do colonialismo europeu na modernidade, que parecem não ter fim- o colonialismo e a modernidade-, busco encontrar o nexo, o sentido do que havemos denominado “o fardo do homem branco”.

Para entender o significado da expressão, “the white man’s burden”, há que ler a poesia homônima de Rudyard Kipling, escrita em 1898, em honra dos E. U. A., que andavam em conflito militar com o decadente, e então reduzidíssimo, império espanhol: na parte do Atlântico, nas Caraíbas, invadindo Cuba e anexando as Antilhas, e da parte do Pacifico, invadindo as Filipinas. Guantanamo, que volta e meia aparece na agenda de notícias dos jornais, devido a seu famigerado cárcere, é um resíduo colonial dos E. U. A. em solo cubano.

A interpretação deste poema de Kipling sustenta que ele anuncia e celebra a passagem do poder colonial da velha Inglaterra para a jovem democracia americana, em nome dos valores sacros e comuns do homem branco e anglo-americano (W.A.S.P. = White– branco; A. S. – anglo-saxônico; Protestant – protestante).

O fardo do homem branco, portanto, consiste na missão de civilizar os povos ainda “bárbaros” e levar-lhes a democracia ocidental, assim como nós, italianos, fizemos na Somália de 1950 a 1960, com a concessão da ONU, ou como os americanos o fazem agora no Iraque e no Afeganistão.
A “civilização ocidental” de Agostinho Neto continua a fazer o contraponto inexorável ao desejo de potência e à máscara do fardo do homem branco, de Kipling.

A reação à colonização cultural imposta pelos países colonizados torna necessário que se veja a literatura produzida fora do circuito das nações européias de uma forma diversa. Não mais como textos literários extra-europeus pertencentes a literaturas exóticas e menores. Hoje estamos em condições de conceber e fruir a literatura mundial de modo que cada uma das literaturas nacionais européias seja vista como uma Provincia mundi.

No fim do ensaio sobre a filologia da literatura mundial, Auerbach cita uma frase de Ugo di S. Vittore, teólogo agostiniano do século XVII:

“Magnum virtutis principium est, ut discat paulatim exercitatus animus visibilia haec et transitoria primum commutare, ut postmodum possit etiam dereliquere. Delicatus ille est adhuc cui patria dulcis est, fortis autem cui omne solum patria est, perfectus cui mundus totus exilium est…”[3]

Auerbach recorre ao texto filosófico medieval para propor um pensamento que define com a expressão Paupertas e terra aliena. Tal pensamento nos habilita a crer, em 1952, que: “a nossa pátria filológica é a terra [die Erde]; não pode mais ser a nação […] Devemos retornar, em circunstâncias diferentes, ao que a cultura medieval possuía antes da formação das nações: o reconhecimento de que o pensamento não tem nacionalidade.” [p. 71].
Há mais de um decênio que se discute a superação da dimensão nacional no golfo místico da globalização, ainda que se não de certo no exílio do transcedental terrestre invocado por Auerbach.

Proponho que reassumamos a cultura de hoje na consideração histórica que parte da consciência cósmica e de espécie[4] para poder conceber uma consciência mundial e para adquirir a nossa consciência européia, acolhendo dignamente toda a responsabilidade[5] desta condição. Por fim, estaremos aptos a conquistar uma consciência critica da própria nacionalidade, a partir, primeiramente, daquela que é linguística[6].

Advogo que, contemporaneamente, adotamos um modelo de relações que pode ser definido pela sigla NEM, isto é, pela ordem de importância, Nação, Europa, Mundo. A este se contrapõe uma outra, inversa, MEN, em que a ordem valorativa é contrária.

A Nação torna possível falar, pensar, ler, traduzir e entender; essa se revela a razão histórica de ser e da própria materialidade primária da comunicação, a da língua. A Europa constitui a nossa mente e suas imagens comuns, que são diferentes daquelas de outras civilizações. O Mundo reassume tudo no seu horizonte último e ordena tudo que temos certeza de saber.

Os dois percursos formam traços contínuos de duas frentes que se entrecruzam, incessantemente.

No início do segundo decênio do terceiro milênio, pode-se dizer que há uma mundialização literária em muitas partes do globo, que não é mais aquela sobre a qual Auerbach se interrogava, ainda que os acadêmicos continuem a debatê-la nessa mesma esfera. A Literatura Mundial não teria razão de ser se fosse só o argumento e domínio das cátedras e institutos de pesquisa acadêmica[7] e se não fosse, sobretudo, uma comunidade sempre aberta e mundial de leitores.
Hoje, a ideia e a realidade de uma Literatura Mundial parece se assemelhar um pouco àquela sonhada por Goethe, escritor-leitor, mais que erudito, mas de um modo menos entusiasta e mais realista, ainda que seguramente mundial em um sentido claro e completo.

A mundialização literária ainda é tímida. Há, por exemplo, pouquíssimos leitores na África, ainda que haja muitos escritores africanos que são lidos por leitores europeus e de muitas outras partes do globo. Recordo-me apenas de um nome de tal penetração, o de Ahmadou Kourouma, narrador francófono da Costa do Marfim, morto em 2003, que como a maior parte dos escritores africanos escreveu para a África inteira, como uma grande pátria e não apenas para a sua própria nação. A esta identificação pan-africana, os escritores do norte da áfrica parecem fugir, como, por exemplo, o Premio Nobel (1988) egípcio Nagib Mahfuz.

Os escritores africanos, sul-americanos e asiáticos têm sido lidos em todo o mundo, entretanto, e muitos deles são migrantes e estão no exílio, como Chinua Achebe, Wole Soyinka, Ngugi wa Thiong’o, ou o Nobel chinês (2000) que vive na França, Gao Xingjian. Estas “injustiças” fazem parte da história de todas as literaturas, porém, em nosso tempo, TAM uma dimensão mundial. Nós, literatos, devemos fazê-la pública, “dizendo a verdade”, conforme nos ensinou Edward Said[8], e contra isso, devemos reagir, começando por nossa própria casa, e não pensando que ela é menos imune à infestação da intolerância em relação aos escritores. Essas injustiças são fruto do nosso tempo; o tempo da mundialização da vida da espécie; o tempo da globalização do regime capitalista. Uma face deformada da mundialização que não é vista pelos cidadãos como emancipação espiritual e como crescimento moral, mas como sistema de domínio generalizado e incontestado dos aparatos dos mercados fiananceiros que determinam as políticas dos estados nacionais e a nossa ventura pessoal. Descolonizar e mundializar as mentes torna-se a única prática civil que podemos contrapor a essa nova forma de “vontade de potência”.

A globalização da indústria cultural, de fato, sobrepõe-se a uma barragem moral progressiva e generalizada, determinada pela indústria do espetáculo e pela comunicação de massa que define cada produção cultural como um evento comercial de acordo com a vontade e controle do poder econômico-político. O que fazer? Não podemos, certamente, nos alinhar de um modo apenas teórico e impulsivo em favor da mundialização dos leitores africanos, como se esta fosse auspiciosa— um adjetivo indefensável e hipócrita, e, portanto, útil em um caso como este; em que se prescinde das questões e das soluções das carências da fome, da sede, das doenças, dos direitos humanos e civis, da estabilização e do bem-estar das pessoas e nações em todos os países oprimidos e explorados das “zonas injustiçadas” do planeta. Mediante tal quadro, nos cabe trabalhar por um aumento da formação humanística dos cidadãos dos países em que vivemos e daqueles outros com os quais possamos contribuir. A começar pela Itália, que é a última nação naquele ramo do desenvolvimento civil, no grupo das nações “ricas” do mundo.

Tudo isto serve pra mostrar o segundo ponto de diferença e de evolução do meu discurso em relação à ideia de Literatura Mundial que Auerbach sustentava em 1952. Refiro-me, portanto, ao segundo ponto depois da mundialização literária conquistada por aquela parte de minha geração que aprendeu o colóquio com os mundos dos escritores africanos, latino-americanos, caraíbas, asiáticos, além daquele dos europeus e norte-americanos. Os que a aprenderam, difundiram-na o mais amplamente possível, e os que não a aprenderam, poucotiveram o que dizer. Ela está presente hoje, em nosso panorama literário e civil, ainda que pouco a considerem ou usem-na como o “caminho para a mundialização”, preferindo vê-la e reduzi-la a uma visão “especialista” pós-colonial, e tratá-la como um campo erudito real, que abrange as literaturas nascidas após o fenômeno do colonialismo, mas que se constituíram ainda em sua vigência. Este modo de entender e protocolar o colonialismo, a sua importância, seu destino e seu conhecimento, leva-o a ser considerado, na Europa, um fenômeno secundário, colateral e, portanto, “especialista” da história da civilização ocidental.

Depois da Segunda Guerra Mundial, em 1949, no início do boom econômico, foi lançada na Itália uma coleção de textos canônicos de todas as literaturas, antigas e modernas, européias e extra-européias, a “Biblioteca Universale Rizzoli”. Ela foi responsável pela formação de uma geração de leitores “universais” e para-escolásticos, que aderiam, ser saber, ao ideal de Goethe, ao invés daquele de Auerbach, centrada, como já vimos, na apreciação dos estudos filológicos e literários, e com o intuito de reformar e adequar as condições da cultura literária no pós- guerra. O lançamento da coleção tornou-se uma oportunidade de dar forma a uma “autoeducação literária”, que se emparelhava com o currículo obrigatório das escolas.

Para muitos, como eu, a coleção significou um encontro com os escritores importantes do mundo: alemães, franceses, anglo-americanos, russos. No entanto, hoje, posso dizer que ela era também “eurocêntrica”, embora se afirmasse “universal”, posto que ignorava os autores da América Central do Sul, com exceção de Machado de Assis. Ainda assim, foi responsável pela mundialização de minha mente, uma vez que educava para a liberdade do imaginário, por meio da autoeducação literária; ao mesmo tempo em que procurava e assegurava um horizonte terrestre mediante uma espécie de expectativa, de “esperança sacra”, em um mundo que tivesse a literatura como a linguagem comum do imaginário. Hoje, em 2010, posso afirmar que o estudante italiano só tem essa oportunidade através das novas mídias, como a internet, porque a escola está empobrecida enquanto instituição.

A evolução da leitura literária na Europa depois da Segunda Guerra Mundial representou um passo adiante na nossa consciência histórica e ensinou a uma parte dos jovens europeus a meta do século a tornarem-se “leitores mundiais”; abertos a todas as vozes e à escritura dos mundos até agora conhecidos, traduzidos e não auscultados, uma vez que eram oprimidos. Ao mesmo tempo, ensinou-lhes a ser parte de um dos mundos do “mundo”.

Esta evolução tornou-lhes aptos a tentar responder a cinco séculos de questionamentos ainda sem resposta, lançados a nós, europeus, que nos comunicamos em todas as línguas do mundo, mas, sobretudo, na nossa; assim como o deformado e selvagem Calibã, da Tempestade, de Shakespeare, anunciou, quando agradeceu Próspero por ter-lhe ensinado o inglês, de modo que pudesse, assim, maldizê-lo melhor em sua própria língua.

Desde a minha geração, a Itália tem tido a oportunidade de receber emigrantes de todas as nações que passaram pela colonização. Eles vêm à procura de um trabalho digno visto que seus países, “independentes”, estão à mercê das necessidade e consumo dos países ricos.

Em 1987, o mesmo ano em que venceu o prêmio Nobel, o poeta russo Iosif Brodskji, exilado da União Soviética desde 1972, escreveu o ensaio “A condição que chamo de exílio” para uma conferência que ocorreu no mês de dezembro do mesmo ano, em Viena. Aconselho-os a lê-lo. É um texto breve, mas importante, que nos coloca diante da graça do humanismo em sua dimensão histórica, literária e mundialista:

“Demos falar porque necessitamos dizer e repetir que a literatura é uma mestra de finesse umana, a maior de todas, seguramente melhor que qualquer doutrina; dizer e repetir que, ao bloquear a existência natural da literatura e a atitude das pessoas a aprender as lições por ela dadas, uma sociedade reduz seu próprio potencial, diminui o ritmo de sua própria evolução e, talvez,coloca em perigo a sua própria tessitura.” (pp.15-16).

Penso que o escritor martinicano Édouard Glissant encontrou outra medida do nosso tempo, chegando a construir uma poética do Mundo Novo no qual vivemos todos juntos: a da crioulização. Em Poética do diverso, ele afirma que o mundo se criouliza, tornando-se consciente de que a humanidade abandona, ainda que com dificuldade, a visão de que uma identidade só é válida e reconhecível a partir da exclusão de outras identidades.

Considerando-se que Glissant é um escritor antilhano, que escreve em francês e descende de escravos, e não um filólogo alemão, e nem mesmo um religioso, de que modo ele fala de crioulização? Vejamos:

“A crioulização exige que os elementos heterogêneos, em relação, se valorizem reciprocamente, sem a degradação ou diminuição do ser. Porque a crioulização é imprevisível, enquanto que os efeitos da mestiçagem são mensuráveis. A crioulização é a mestiçagem com o valor adicional do inesperado.”[9]

A crioulização é o que também sucede na Europa, sobretudo nos últimos trinta anos, provocada pelos escritores migrantes que contribuem para a produção de um novo imaginári comum nas línguas européias.

A uma pergunta minha, em mensagem particular, sobre qual era o seu idioma natal e se ainda se comunicava através dele, o escritor de origem siberiana Nicolai Lilin, que vive há alguns anos em Piemonte, respondeu:

“A língua russa é minha língua materna. Nunca tive a oportunidade de aprender os dialetos siberianos em que meus avós se exprimiam, porque, quando eu nasci, a nossa sociedade já não os usava mais, tudo era dominado pela língua russa. Agora a língua que mais uso é a italiana, quase não falo mais em russo, apenas com os meus familiares, em umas poucas ocasiões. Assim, posso dizer que a primeira língua para mim é a italiana; escrevo em italiano e me relaciono em italiano, até meus sonhos e pensamentos agora são em italiano.”

Ler a obra de Lilin, para nós, italianos, significa expor-se ao imaginário russo-siberiano, que ele nos trouxe através de nossa língua comum. Alguém tem medo de Nicolai Lilin ou de Gezim Hajdari, poeta albanês, que em 1997 venceu o Premio Montale? Sim, certamente, como se faz para decidir colocar em risco a própria “identidaderia”, a nobre e antiga identidade italiana, para unir-se ao brodo inconsciente e regressivo da crioulização com os imigrantes? É com respeito a este o dilema que nos dividimos. Para mim, a crioulização é uma face significativa da mundialização. A defesa retórica de um patrimônio genético-identitário italiano leva apenas ao retrocesso, pensando-se estar firme, e detém-se no presente.
Muitos escritores antilhanos colocaram em cena, nos Novecentos, a resposta de Calibã, cidadão do “Bravo Mundo Novo”, aos novos “senhores” europeus, a partor de Próspero, em sua língua imperial: em inglês, espanhol, em francês, sobretudo. Com o português, que participa com o modernismo dos anos 20, com a resposta antropófaga. Partamos do Brasil: em 1924 o poeta Oswald de Andrade publica o “Manifesto da poesia Pau-Brasil”, no qual afirma: “Tudo digerido”. Do que fala? No “Manifesto Antropófago”, de 1928, mostra o corpo digerido. No “ano 374 da deglutição de Vescovo Sardinha” (p. 34): o primeiro europeu devorado pelos canibais no Brasil. Toda a cultura européia foi devorada pelo Novo Mundo, comida e digerida para educar e instruir Calibã e para fazê-lo tornar-se em um poeta que reescreve e inventa finalmente a literatura do mundo de todos os mundos: “Antropofagia. Absorção do inimigo sacro. Para transformá-lo em totem: a aventura humana.” (pp. 33-34)[10].

George Lamming, escritor anglófono de Barbados, publicou em 1960, uma coleção de ensaios com o título Os prazeres do exílio[11]. É a narração da história de um homem e sua liberação; em um dos textos do livro Lamming propõe uma reescritura de A tempestade. Lamming emigrou para a Inglaterra, dunrate o fluxo da Grande Emigração dos anos 50, das “Índias Ocidentais” – Jamaica, Barbados, Trinidad, Antigua, Tobago – para a ex-metrópole, Londres, favorita do Nationaly Act inglês do 1948, que equiparava os habitantes das colônias aos cidadãos britânicos. No livro, Lammig afirma que preferia o nome “Caraíba” àquele de uso inglês, ou seja, Índias Ocidentais. Edward Kamau Brathwaite, também de Barbados, retoma, anos depois, o tema de Calibã na trilogia The Arrivants: a new Trilogy (1993).

O poeta e crítico cubano Roberto Fernández Retamar, dedicou uma longa e progressiva investigação e reivindicação da figura de Calibã com protótipo da literatura do Novo Mundo e de todos os mundos oprimidos. Seu trabalho está compilado no volume que recolhe trinta anos de pesquisa e discussão intitulado Todo Caliban (2000).

Em 1969, Aimé Césaire publicou Une Tempête. Théâtre. D’après de Shakespeare. Adaptation pour un théâtre nègre, que busca “responder” ao teatro europeu usandoa resposta de Calibã – “enclave nègre”/escravo negro, para Césaire, enquanto que para Shakespeare é “a salvage and deformed slave”/um escravo selvagem e deformado – em nome de todos os negros do mundo.

Convoquei os poetas mencionados, através do “mito” moderno de Calibã, para propor a ideia de que eles renovaram, sem que nós, na Europa o supuséssemos , a possibilidade de pensar e praticar o senso e o valor da literatura mundial durante o Novecentos. Enquanto Auerbach citava com tristeza— não apenas por si mesmo, mas por mim também— “ o mundo como exílio” ao fim do ensaio de 1952, os “ povos negros” das Antilhas, do Brasil, de Louisiana e da África, enviados para a morte nas guerras mundiais como os “tirailleurs senegalais”, pensavam um mundo mais Just e solidário que o dos brancos, e pensavam-no também para nós.

Afirmo, enfim, que a “Literatura do mundo” nasceu na modernidade quando os povos subjugados e ofendidos pelos europeus começaram a ler e a escrever. E, assim, permitiram a todo mundo o mesmo. Todos nós chegamos a compreender quem é Calibã, que é qualquer um de nós, se através da leitura pudermos conquistar esse dom.

Depois de quatro séculos, pois A Tempestade é datada entre 1611 e il 1612, quatro anos antes da morte do Bardo– Edward W. Said, um comparatista e “aluno” de Auerbach e di Vico, mas também de Foucault e Gramsci, escreveu Culture and Imperialism[12].

Entre a maldição de Calibã e a posição do comparatista ocidental-oriental da segunda metade do século XX, transparece diante de nossos olhos um claro movimento de mundialização das literaturas nacionais e das mentes individuais; uma visão, progressiva e liberatória, que os grandes burgueses europeus não poderiam ter. De fato, Said afirma, a propósito de Fanon:
“A sua mensagem é: devemos lutar para liberar a humanidade inteira do imperialismo; devemos narrar a nossa história e a nossa cultura reescrevendo-as de um novo modo; tudos nós compartilhamos essa mesma história, ainda que para alguns de nós ela tenha sido sinônimo de escravidão.”[13]

De italiano europeu com uma consciência mundialista, transformei-me, nos últimos 20 anos, chegando a pensar que a “Civilização ocidental” branca – a que está no título do poema de Neto – inventou o Orientalismo, para avizinhar-se do mundo oriental, conforme ensinou Edward W. Said[14]. Enquanto que a “civilização ocidental” escura – a que submetemos e escravizamos, a que pagou pelo nosso desenvolvimento, inventou uma literatura de protesto e os Estudos Culturais, dos quais Said e tantos outros que são lembrados e celebrados nesses escritos, são os mestres. O Orientalismo tem sido e é uma instituição imaginária e um modismo do saber, os Estudos Pós-coloniais (mesmo já começando a sofrer da erudição e da síndrome da academia Norte-Americana) e as literaturas dos mundos, formam a consciência crítica do protesto de Calibã e da esperança sacra di Agostinho Neto.

O leitor, visto que já exposto a essa dupla visão, poderá fazer a escolha acertada. De um lado, a literatura que através da crítica fala a si mesma de um modo ainda eurocêntrico; e do outro, a literatura em uma perspectiva mundialista, destinada a cada um de nós e a todos, ao mesmo tempo. Importa reafirmar que a perspectiva oferecida por uma literatura mundial deriva do movimento de descolonização e nos levará a dignidade de falar e ler, para podermos, então, sentir e reconhecermo-nos e traduzirmo-nos finalmente na “Pátria” comum que se chama “Mundo”.

Adendo:
Em 1983 organizei uma antologia crítica sobre a literatura mundial, intitulada La letteratura del mondo, pubblicada em 1984 pela editora Carucci, de Roma. Aquele livro inaugurou o meu ensino de Literatura Comparada na Università dgli Studi di Roma, La Spienza. No início, como dedicatória, estava escrito:

“Este livro é dedicado aos meus alunos: àqueles distanciados no tempo, imersos agora em seu próprio destino, que ainda conservam uma recordação de nosso encontro; àqueles que lhe estão próximos, em torno da sua existência material; àqueles que ainda virão, até aqueles que – espero – ainda não nasceram.”

Este artigo, eu dedico àqueles e todos os demais, de 2010, ano em que escrevo, retrospectivamente, em direção ao passado. Se meu primeiro contributo foi revestido do eurocentrismo, este demonstra que, no contato com os estudantes, colegas estrangeiros e amigos imigrantes, aprendemos juntos a nos descolonizarmos. Nada mais próprio, portanto, que, em minha despedida da vida acadêmica, eu faça essa nova dedicatória.



[1]Usamos a tradução italiana de Regina Engelmann do livro Philologie der Weltliteratur/ Filologia della letteratura mondiale, organizado por Enrica Salvaneschi e Silvio Endrighi, com o texto em alemão à frente, Book Editore, Castel Maggiore (Bo) 2006, p. 41. A tradução livre em português é da tradutora do artigo.
[2] Si vedano i lavori in Italia di Sandro Mezzadra, che ha introdotto questa scuola di pensiero in Italia curando il volume di R. Guha e G. Ch. Spivak, Subaltern Studies. Modernità e (post)colonialismo, ombre corte, Verona 2002 e pubblicando poi il suo La condizione postcoloniale, ombre corte, Verona 2008.
[3] É um grande princípio de virtude que a mente se exercite, primeiramente aos poucos, para mudar estes lugares visíveis e transitórios, para então ser capaz de abandoná-los. É débil a pessoa para quem a pátria ainda é doce. É forte aquele para quem qualquer país se torna sua terra natal, mas é perfeito aquele para quem o mundo inteiro é lugar de exílio (Tradução de Shirley Carreira).

[4] Ver a minha abordagem de “Principio Antropico Cosmologico” – John D. Barrow e Frank J. Tipler, The Antropic Cosmological Principle, 1986, tr. it., Il Principio antropico, Adelphi, Milano 2002 – em L’educazione del te, cit.
[5] Ver o meu texto, “Qui êtes vous? ne el reino de este mundo?” em Decolonizzare l’Italia, cit. O título deste ensaio é composto por frase interrogativa – dirigida a nós, europeus, por Aimé Césaire – que se conecta por meio de um ne em italiano com o título de um livro do escritor cubano Alejo Carpentier, de modo que os títulos são evocados em seu idioma original.
[6] Ver o ensaio “Decolonizzare l’Italia” na obra homônima. A este ajunto o que escrevi por ocasião da recepção da medalha de prata pela resistência lingüística, em sua primeria edição, em 25 de abril de 2010, disponível em:
http://vozeshibridas.blogspot.com/2010/07/in-occasione-del-conferimento-della.html



[7] Também colaborei com os Institutos de Literatura Mundial da Academia de Ciências de Budapeste, Bratislava e Skopje. Pode-se encontrar um fruto exemplar dessa colaboração no volume organizado por mim e pelo comparatista eslovaco Dionýz Ďurišin, Il Mediterraneo. Una rete interletteraria, Bulzoni, Roma 2000. Nos anos 80 e 90 do século passado era importante collaborare com os colegas comparatistas da Europa central, dando suporte à pesquisa e difundindo os resultados. Ainda é, para os fins de manutenção de uma circulação virtuosa e justa do saber comum, em um tempo em que é comum, ou, assim se espera, de união européia, mas essa é uma tarefa amarga e difícil para os países periféricos e ex-comunistas.
[8] Dire la verità. Gli intellettuali e il potere, tr. it., Feltrinelli, Milano 1995, Representations of the intellectual, 1994.
[9] Introdution à une poétique du divers, Gallimard, Paris, 1996, pp.16-17

[10] La cultura cannibale. Oswaldo de Andrade: da Pau-Brasil al Manifesto antropofago, organizado por Ettore Finazzi-Agrò e Maria Caterina Pincherle, Roma, Meltemi,1999.
[11] Allison and Busby, London: 1960.
[12] Culture and Imperialism, A. A. Knopf, New York 1993; Cultura e imperialismo. Letteratura e consenso nel progetto coloniale dell’Occidente, tr. it., Roma, Gamberetti, 1998
[13] Op. cit., p. 302.
[14] Orientalism, tr.it., Bollati Boringhieri, Torino 1991, poi Feltrinelli, Milano.
Texto originalmente publicado na Revista e-scrita, v. 2, da UNIABEU.

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